DÁ PRA CRITICAR SEM TER A VIVÊNCIA?
Se ler personagens racistas já incomoda a algumas pessoas brancas, imagina se elas aguentariam ser o vilão na vida real e por séculos? Fiquei com essa interrogação depois que li sobre a treta de uma crítica branca ao livro Salvar o Fogo, do autor Itamar Vieira Júnior.
O assunto é extenso, mas começo concordando que faz todo sentido o autor Itamar Vieira Júnior pontuar que aquela senhora não tem vivência para analisar uma narrativa colonial. E não é porque ela não é negra. É pelos termos e a visão que ela expressa sobre algo que visivelmente não tem propriedade sobre como se sentiria um de nós, pessoas pretas, naquelas situações que a narrativa do Itamar aborda.
A crítica branca entra num looping de whitexplaining para dizer como pessoas pretas deveriam reagir na narrativa e principalmente como o autor deveria retratar os personagens racistas. Oi? Reclama que os personagens negros são “bonzinhos” e os personagens brancos são colocados como muito maus…aí, aí,aí, que feio, hein, seu Itamar?
Que maldade com os pobres racistas! A crítica defende que pessoas brancas não são monstros… Espera…mas…a narrativa é sobre racismo…os personagens deveriam ser racistas e bonzinhos? Se a narrativa é sobre o que sofremos com o racismo, deveríamos ser quem? Os bandidos da história?
Sei que ela crítica que o Itamar deveria ter escrito uma história assim ou assado, com os personagens sentindo assim ou assado e reagindo da maneira assim ou assado, como ela gostaria. Ué, mas então ela deveria escrever essa outra história, pois do jeito que ela gostaria seria outra história! A que o Itamar quis contar foi aquela. Ela não julga o livro como ele é. Ela julga como ela queria que tivesse sido e não foi. Eu ainda acho que ela não deveria passar vontade: deveria escrever e ver se alguém compra, lê e gosta, mas…enfm…
Não há como não considerar que quase um milhão de pessoas compraram os livros do Itamar, um homem preto e nordestino. E que dentre as pessoas que enxergam que o Itamar retrata o que se seus antepassados vivenciaram, pessoas que ainda passam por situações de racismo até hoje, não vi alguém que tenha lido a obra e termine reclamando, quanto mais achando rasa.
A opinião sobre obras de autoria negra é sobre o que nos emociona e nos traz a sensação de representatividade. Essa emoção é pra quem sabe o quanto significa se ver nas páginas de um livro, como protagonista e o que é melhor: escrito por mãos como as nossas, que antes eram vistas somente para trabalhos braçais.
A crítica deixa explícita uma compreensão muito rasa para a importância das obras do Itamar e de outros autores negros. Como diria Caetano naquele Festival da Canção: "Ela não está entendendo nada". Autores negros estão em cena e escrevendo e pessoas negras finalmente conseguem se enxergar nas páginas e se ver contando suas próprias histórias.
E isso sacode o grupo que se coloca como se fosse o universal, a regra, mas na verdade também é um grupo identitário, o de autores brancos. E por que não são chamados de identitários? Como estão no poder, estabelecem que os demais são diferentes, são minorias. Minorias? A população negra perfaz mais de metade da população, entre as pessoas que se declararam ao IBGE de pele preta e parda.
Aquela crítica visivelmente trata-se de uma tentativa de manutenção dos velhos privilégios e desmerecimento de letras pretas. A crítica branca que se acostume a chegar pro lado, porque nós também estaremos no centro da cena. E vai ser com as nossas palavras. Sem precisar de autorização ou validação de outra cultura para falar sobre a nossa.
Sou Cíntia Colares
Sou Flor de Lótus