CÍNTIA MORDIDA: Hipocrisias para as quais não tenho mais paciência para sorrir de volta
E nem quero e nem acho que deveria ter
Mesmo quando assumi pra mim que não acredito na existência de um ser superior e que cuide de nós ainda assim não consegui me desfazer da minha imagem da Mãe Oxum
Ela ficou num canto, sem atenção ou reverências, sequer olhava pra ela, mas não consegui me desligar dele.
Como se comigo ela estivesse.
Independentemente de eu negar que algo me proteja.
Então entendi que quando eu digo que não existe um ser superior e nos cuidando é porque esse conjunto eu realmente não vejo existindo. Não vejo, de não percebo, não sinto.
Ou não existe um ser superior acima de nós e isso explica estarmos tão à deriva dos rumos que buscamos. A gente rema para um lado, a correnteza leva para outro. Outros nem remam tanto e flutuam para outras direções e quem está organizando essa expedição e cuidando dos troféus e medalhas? Particularmente acho que ninguém.
Porém, pode sim, existir e, nesse caso, nem sei se não é pior admitir que então existe e nada faz ou existe e até se diverte sadicamente com nossos infortúnios.
Eu prefiro achar que não existe, mas se existe sou obrigada a dizer que é no mínimo omisso com tantas injustiças.
E onde entra a Mãe Oxum nisso tudo?
Ah, voltou para a mesa da minha sala reinando linda e me lembrando de suas manhas, de contornar os obstáculos como um rio, de avisar que águas de rio parece calma, mas entra errado pra você ver onde vai parar, pra me lembrar de cuidar de mim, de não aceitar nada pela metade em nenhum tipo de interação. E nisso ela me protege, sim.
Se interfere, muda o destino, não sei, mas que se manifesta em mim e conduz minhas reflexões sobre como agir, enxergar aos outros e principalmente me enxergar, isso ela faz desde sempre e eu sinto vivo dentro de mim.
Minha mãe Oxum nunca me deixou.
Até mesmo quando eu sai de mim e não sabia mais como voltar. Ela me fez navegar de volta ao meu interior para depois correr mundo contornando o que vier como água do rio que sabe que seu trajeto corre em direção a um mar imenso. Busco oceanos. E não importa se acreditam que eu deva ficar parada numa poça ou até mesmo na lama.
Porque até mesmo na lama eu irrompo com a minha estética, minha força e meu comportamento que não atende ao ambiente e não é para atender mesmo.
Meu objetivo não é ser confortável para os outros. Busco o que me é devido e se isso desconforta alguém, alguém precisa ficar desconfortável para reparar o que historicamente foi negado a mim e aos meus.
Para deixar sorrisos e abraços confortáveis, eu teria que seguir chorando e eu não quero chorar mais do lado de fora do que eles desigual e despreocupadamente desfrutam sorrindo. O sorriso deles vem do nosso desconforto. O desconforto deles virá das minhas falas escancarando que eu sei que eles sabem como está bom pra eles e que eles não tem pressa que isso mude, se é que algum deles quer realmente que mude algo.
Ah! E eu também sorrio de peito aberto, assim como eles em seus eventos felizes e caros, eu também sorrio a cada martelada que dou nessa estrutura podre de privilégios, a cada fala que desmente o argumento de que eu queria fazer algo, mas não sei como ajudar. A ajuda está escrita em uma vasta bibliografia e está em cada mulher negra que essas pessoas conhecem o nome, mas se negam a conhecer o que passam e a fazer algo para mudar porque aí a agenda já não deixa. Sobre o que você anda lendo, o que você anda assistindo e a quem você anda ouvindo que você ainda não sabe o que fazer para combater o racismo entranhando nos seus dias desde que você nasceu?
Cíntia Colares , a Flor de Lótus
(MTB 11082)
Jornalista, poeta, escritora, mãe solo, mulher preta e periférica antes de tudo.
Ora, acima está o céu
Da boca espirram palavras novas
Velhas caveiras que não mudam
Desnudam sim privilégios
Violentos modos viventes
Sobras de outras épocas
Tempos retornáveis
Garrafas pet latindo.